Consulta



A sala rústica, pouco mobiliada, cercada por meia dúzia de quadros inspirados no movimento renascentista. No centro ficava uma poltrona confortável, de cor vermelha, posicionada de frente a mesa que a separava da cadeira do Doutor Edson Calado.

De um lado, um homem aparentemente incomodado por estar ali. Coçava a cabeça e mexia as mãos de vez em quando, levando-as algumas vezes até o bigode bem aparado e lustroso. O suor que brilhava na testa deixava transparecer certo nervosismo. Era alto e ligeiramente magro. Seu nome era Juvenal Manso.

Do outro lado estava um homem alinhado e esbelto, por volta dos seus 50 anos, vestindo terno e gravata. Os olhos claros fitavam o estranho sujeito sentado no divã. Este era o Doutor Edson.

Na quinta sessão de análise, um curioso silêncio pairou no ar, quase sufocante. Calado permaneceu sem pronunciar uma palavra. Manso quebrou o sossego de forma inesperada.

― Pare de me analisar! A única coisa que você tem feito é observar os meus passos, desde a hora em que eu entrei por aquela porta. Sempre fica aí, do outro lado da mesa, com esse olhar feroz, de quem quer entrar na minha mente, invadir as minhas idéias.

― Isso te deixa constrangido? O fato de eu estar aqui, analisando você?

― Constrangido? Isso me deixa nervoso.

― Então vamos começar por essa resistência em admitir que você está aqui pois precisa de ajuda.

― E quando eu neguei que preciso de ajuda?

― A partir do momento em que a minha presença torna-se um obstáculo para o seu bem estar, isso revela a sua insegurança em admitir que precisa de intervenção.

― Mas eu não preciso de intervenção, não estou louco.

― Nem eu seria capaz de afirmar tal absurdo.

― Eu sei que preciso de ajuda, mas não preciso de ninguém olhando pra mim com cara de tacho.
― Certo. E o que mais incomoda em mim?

― Oras, Doutor, não me leve a mal, mas você parece ser o tipo que demora muito pra tomar decisões, para agir. Faz cara de quem está analisando, mas no fundo fica pensando mil vezes no que vai falar pra não dizer asneira.

― Bravo! Esplendido!

― Mas o que eu disse de tão extraordinário, Doutor?

― A maneira como você jogou uma característica sua para mim, como se estivesse me analisando, quando, na verdade, estava fazendo uma auto-observação.

― Ih, Doutor, o senhor vai me desculpar, mas o senhor é um sujeito complicado.

― De forma alguma. Veja bem. Estou funcionando como um espelho para você. Ao olhar que eu estou te analisando, você acabou fazendo uma avaliação de si mesmo.

― Ahn??? Mas eu só disse aquilo que qualquer pessoa no meu lugar diria. Em outras palavras, Doutor, o senhor é devagar, quase parando.

― Exatamente. É isso que te trouxe até aqui. A sua relutância em aceitar as mudanças da vida. O seu comodismo diante de situações que te deixam nervoso.

― Mas eu aceitei que minha mulher me trocou pelo analista dela.

― Mas ainda não aceitou o fato de que o amante fui eu!!!

A última frase foi a confirmação que Juvenal esperava. Um tiro certeiro encerrou para sempre aquela que foi a última análise que o Doutor Edson realizou em vida.

Depois disso, Juvenal, o marido traído duas vezes, pela mulher e pelo analista, nunca mais sentou no divã.



*Autora:
Livany Salles, jornalista e escritora nas horas vagas. Eu = sem justificativas, sem denominações ou qualquer rótulo estampado no vidro de um produto na prateleira
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